Na vida,
colecionamos muitas amizades, muitos momentos que, com certeza, dariam um
livro. Todos temos o livro de nossa da história e o escrevemos muitas vezes sem
nos darmos conta de que o fazemos, ainda que este livro seja sempre um registro
de lembranças, doces lembranças, da nossa memória.
Na infância,
encontrei com um ser humano especial que se chamava Fúlvio, de uma tradicional
família. O pai era um médico conceituado e dono de um hospital. A mãe, pelo que
consta, era dona de casa muito dedicada e...brava!
Mas, voltando
ao amigo, ele era acometido de uma doença- hemofilia- e esta doença impedia que
ele tivesse uma locomoção normal. Na nossa infância, era eu quem quase sempre
estava empurrando o skate em que o Fúlvio deslizava pela Praça das Mães nas
nossas brincadeiras. E olha que o piso não era muito adequado, com pequenas
pedras quadradas. Mas, isso não fazia importância, afinal, o juízo era pouco.
Quando o
tempo estava bom (o clima e a paciência da mãe do Fúlvio), nós tomávamos banho
na piscina da sua casa, uma das poucas, na época, a contar com este equipamento
de lazer. Mas, antes de dar um mergulho, a brincadeira era fazer nossos
carrinhos de plástico descerem uma rampa que havia na casa. Para dar maior
velocidade, a gente abria os carrinhos e colocava pedras para ficar mais
pesados. Assim, a corrida fica mais emocionante com os “possantes”. Quando não
estávamos na adrenalina das corridas dos carrinhos de pedras, jogávamos um jogo
que foi lançamento mundial, na época, o WAR. Eu nunca cheguei a ganhar. Mas,
ainda assim, era muito bom.
Havia também
uma coisa que nos unia: a música. Eu era fã de Beatles e o Fúlvio, de Elvis
Presley. Sempre estávamos discutindo (no bom sentido), qual era melhor. No seu
violão, Fúlvio tocava algumas belas canções de Presley que, devo admitir, é bom!
Claro, nem tanto quanto os Beatles.
Vez por outra,
tinha algo que era a maior das emoções: o pai do meu amigo colocava o seu
veículo Landau reluzente com um motorista para nos levar ao Parque Mutirama, em
Goiânia. Lá, tínhamos ingressos para vários brinquedos, em especial, um
trenzinho que percorria quase toda a sua extensão e era uma das sensações do
lugar. E, cá para nós, a viagem no Landau também era bem divertida.
O mais
interessante de tudo isso é que, apesar das limitações que o Fúlvio tinha,
nunca tivemos qualquer problema e isso, talvez, fez com que eu tivesse uma
visão mais aberta em relação às pessoas com deficiência, porque, absolutamente,
somos todos iguais. Todos nós temos limitações, em níveis e circunstâncias
diferentes. E as diferenças, por incrível que pareça, é o que nos faz iguais.
O tempo que
tivemos de amizade foi curto, mas a aprendizagem foi grande. Não só o Fúlvio,
mas também os seus irmãos Marcelo e Leonardo. Este último, um dos poucos que
faziam quebrar a seriedade de meu pai, a quem o Leonardo também o tratava como
tal.
Aqui,
recordando, até, duas situações: a primeira foi uma vez em que, pelo medo meu
pai, ninguém ousava chegar comum cigarro perto dele. E, embora rebelde, o
Leonardo não transgredia algumas regras lá de casa, onde ela passava maior
parte de seu tempo. Eis que, um dia, ele estava fumando um cigarro e, no
instante, meu pai estava chegando e aí se complicou. Os passos foram se
aproximando e, temendo a já anunciada briga, Leonardo colocou, literalmente, o
cigarro na boca. Fumando internamente, Leonardo se safou e o Seu Edésio saiu do
quartinho, onde todos estavam, com a “pulga atrás da orelha”. Ato contínuo,
mais que depressa, ele retirou o cigarro da boca. A outra situação era com o
telefone. Naquela época, era um aparelho de luxo e caro, por isso, meu pai
limitava ligações com um cadeado no discador. Mas o Leonardo não tinha jeito,
ele batia o tanto de vez que era o número discado na tecla de desligar e dava
certo, a ligação era feita.
Pessoas
especiais como estas: Fúlvio, Leonardo e Marcelo, surgiram, fizeram parte da
nossa vida e se foram. Mas, foram tantas coisas boas, que a alegria das
recordações supera as dores. Hoje, lembro do amigo Fúlvio com um grande orgulho
e agradecido pelo universo ter conspirado para que pudéssemos compartilhar esta
amizade, sem preconceitos e diferenças. Simples e sincera!
Infelizmente, faltou a
foto, porque a gente não tinha máquina e, na época, nem havia sinal de que inventariam
uma coisa chamada celular. Mas, felizmente, não tem foto melhor do que a
memória!
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